O recrudescimento da violência policial no Rio de Janeiro e a criação do chamado “Consórcio da Paz”, formado por sete governadores alinhados à direita, reacenderam o debate sobre o uso político da segurança pública no país. Para especialistas, a retórica adotada por autoridades estaduais reforça uma lógica de confronto e serve a propósitos eleitorais, deslocando o debate do campo da segurança para o da disputa ideológica.
O sociólogo Ignacio Cano, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), afirma que o nome do consórcio é uma inversão de sentido. “Deveria se chamar Consórcio da Morte, porque o que esses governos estão promovendo é letalidade, não paz. Toda vez que o termo for usado, será lembrado o número de mortos que produzem”, critica.
O grupo, liderado por Cláudio Castro (PL-RJ), reúne ainda Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP), Romeu Zema (Novo-MG), Jorginho Mello (PL-SC), Eduardo Riedel (PP-MS), Ronaldo Caiado (União-GO) e Ibaneis Rocha (MDB-DF). A proposta é unir forças para enfrentar o crime organizado, mas o discurso tem sido marcado por expressões que especialistas classificam como populistas e perigosas.
“Narcoterrorismo” e oportunismo político
Termos como “narcoterrorismo” e “narcomilícia” vêm sendo usados pelos governadores para se referir a facções criminosas. Para a antropóloga e cientista política Jacqueline Muniz, professora da UFF, a linguagem serve para justificar políticas repressivas e ampliar o poder do Estado sem transparência.
“Quando se fala em narcoterrorismo, está se pedindo mais orçamento, mais poder e menos prestação de contas. Isso oculta incompetência e oportunismo político”, afirma Muniz.
Cano acrescenta que o termo é errado até conceitualmente: “O terrorismo tem objetivos políticos. No narcotráfico, o objetivo é o lucro. É uma contradição em si”.
Apesar disso, cresce no Congresso a tentativa de ampliar a definição de terrorismo. O Projeto de Lei 724/25, de autoria do deputado Coronel Meira (PL-PE), propõe incluir o tráfico de drogas ilícitas nesse conceito. A proposta já passou pela Comissão de Segurança Pública e aguarda análise na CCJ antes de ir a plenário.
Pressão internacional e riscos democráticos
A retórica adotada por governadores também reflete pressões externas. Países como Argentina, Paraguai e Estados Unidos têm incentivado o Brasil a classificar facções como PCC e Comando Vermelho como organizações terroristas. Para o pesquisador Jonas Pacheco, da Rede de Observatórios da Segurança, isso abre espaço para ingerências estrangeiras.
“É uma forma de os EUA intervirem no nosso território. Desde o 11 de setembro, o terrorismo é usado como justificativa para ações autoritárias. Essa retórica fragiliza a democracia e legitima a repressão”, alerta.
Cano lembra que leis antiterrorismo ampliam prazos de prisão e reduzem garantias processuais. “Nenhuma autoriza execuções sumárias, mas, na prática, são usadas para isso em países como El Salvador e Equador”, destaca.
A “guerra às drogas” e o medo como política
Os especialistas também criticam o uso do termo “guerra às drogas”, comum entre governadores e forças de segurança. Para eles, a expressão legitima a violência estatal e transforma favelas em campos de batalha.
“Quem é o inimigo nessa guerra? O traficante que lava dinheiro na Faria Lima ou o jovem preto e pobre da favela?”, questiona Pacheco.
Muniz reforça que segurança pública não se mede por mortes, mas pela preservação da vida. “O uso da força não é um fim em si. Se o Estado mata, falha no seu dever de garantir segurança”, diz.
Cano complementa: “Autorizar a polícia a agir sem controle é um risco para todos. Quem acredita que só o morador da Penha ou do Alemão será afetado está enganado”.
Para os estudiosos, o discurso da “guerra” serve a um projeto autoritário, que transforma a insegurança em instrumento político. “Quanto maior o medo, mais poder têm essas autoridades. A população abre mão das liberdades em troca de proteção — e acaba sendo dominada”, conclui Muniz.
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